O Dia de Finados como lugar de memória e o mausoléu aos mortos de Canudos no Cemitério do Campo Santo
O DIA DE FINADOS COMO LUGAR DE MEMÓRIA E O MAUSOLÉU AOS MORTOS DE CANUDOS DO CEMITÉRIO DO CAMPO SANTO
Marcos Roberto Brito dos Santos *

O termo “lugares de memória”, cunhado pelo historiador francês Pierre Nora em seu texto paradigmático que introduziu a série Les Lieux de mémoire, publicado em meados da década de 1980, ganhou notoriedade no meio acadêmico, embora nem sempre seja devidamente compreendido na amplitude conceitual que este autor lhe atribuiu. Empregado normalmente para se referir a espaços físicos como o dos cemitérios (para ficarmos em um exemplo no campo dos estudos sócio-culturais sobre a morte), em sua gênese, na concepção proposta por Pierre Nora, sua materialidade adquire contornos mais complexos. Assim ele entende que “mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança” e, ainda, que em certo momento o 14 de julho, dia da queda da Bastilha, passou a se constituir como um lugar de memória para os franceses.
Criada por volta do ano de 1030 pelo abade beneditino Odilo de Cluny e instituída para todo o mundo católico pelo Papa Clemente V, a partir de 1311, a data de 02 de novembro, o dia de finados, tornou-se, ao longo dos séculos, como dia do calendário anual dedicado às lembranças particulares dos familiares mortos, um importante lugar de memória para toda a civilização cristã ocidental. Entretanto, há de se notar o caráter eminentemente individualista da comemoração, gestada no seio do desenvolvimento da sociedade moderna, com sua forte tendência a vivenciar esta experiência do “lembrar dos mortos” apenas subjetivamente, no âmbito dos sentimentos familiares.
Indo numa direção complementar, gostaríamos de aproveitar este dia de finados para propor uma forma de rememoração diferente, enxergando nele também a oportunidade de reforço para a memória e identidade coletiva, ressaltando a efemeridade da vida biológica e a irmandade entre todos os seres humanos, desejando resgatar a solidariedade entre os homens em um mundo cada dia mais individualista e violento.
Pois é neste sentido que a história do Mausoléu aos Mortos de Canudos, erigido no Cemitério do Campo Santo pelo Comitê Patriótico da Bahia, no despontar do século XX, se torna um exemplo interessante para pensarmos uma maneira coletiva e cívica de vivenciarmos a experiência de luto. O Comitê Patriótico foi uma organização criada em meio a Guerra de Canudos, sendo fundado a 28 de julho de 1897, em um momento em que as forças militares enfrentavam baixas substanciais em seu efetivo, entre doentes, feridos mutilados e mortos. Composto por membros da elite baiana, com presença em Salvador, Queimadas e Cansanção, tinha o objetivo inicial de angariar doações e prestar assistência social, médica e sanitária especificamente aos soldados e seus familiares. Com o fim da guerra em outubro de 1897, esta assistência humanitária, entretanto, logo se estendeu também às vítimas, às viúvas e aos órfãos dos sertanejos conselheiristas, tornando-se, o Comitê, um dos principais instrumentos na defesa dos interesses e direitos dos vencidos.
A elevação do mausoléu aos mortos de Canudos foi deliberado pelo Comitê Patriótico em uma de suas reuniões extraordinárias, sendo encaminhada petição datada de 31 de agosto de 1899, quase dois anos após findo a Guerra, pelo secretário da entidade, o jornalista Léllis Piedade, ao provedor da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, Manoel de Souza Campos. Dizia assim o documento: “Ilmo. Sr. Desejando este Comitê perpetuar a memória dos mortos em Canudos, por meio de um monumento no Cemitério do Campo Santo, vem solicitar de V. Ex. a necessária licença para aproveitar-se de local que V. Ex. designará em sua sabedoria. O patriotismo nunca desmentido de V. Ex. acolherá este pedido com a solicitude que tanto o caracteriza”.
Despachada a solicitação ao mordomo (espécie de administrador) do Cemitério do Campo Santo, ficou então definido junto ao requerente a concessão de um terreno por este escolhido, em caráter de perpetuidade, no quadro nº 6, medindo 12 x 12 palmos, que por sua vez foi aceito pelo provedor pela oferta de 2 contos de réis. Lavrou-se, assim, a escritura da cessão do terreno em 03 de outubro de 1899, com a finalidade de “n’elle se erigir um monumento em commemoração aos mortos em Canudos”.
Em granito negro, com três metros de altura, em forma de pentágono com ponta piramidal, o monumento teria sido trabalhado nas oficinas de Xaver Arnold, em Hamburgo, na Alemanha. Na face principal, vê-se um escudo de bronze com a inscrição “Em nome da Bahia, Aos mortos de Canudos, Homenagem do Comitê Patriótico”, seguindo-se os nomes do presidente, secretário e tesoureiro (respectivamente o alemão Franz Wagner, Lellis Piedade e Fernando C. Koch). Registra-se no bronze o ano de 1897, ano da Guerra de Canudos, e não o relativo a edificação do monumento. Segundo o Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia, publicado em 1901, “o monumento custou pouco dinheiro, tal a modéstia que presidiu a sua confecção”.
Inaugurado em 02 de fevereiro do ano seguinte, o monumento teve cerimônia simples, com presença de alguns membros mais atuantes do Comitê, representantes da imprensa e da Santa Casa da Misericórdia. Oraram ou discursaram o cônego Zótico Apetece, capelão do cemitério, o frei capuchinho, membro do Comitê, Jerônimo de Montefiori, o comendador Silvestre de Faria e o jornalista Léllis Piedade.
Um elemento central a ser destacado é o fato de que, diferente da “Homenagem do Exército aos Heróis de Canudos”, obelisco, também em granito, erigido pelo Ministério da Guerra, inaugurado em 1961, no Forte de São Pedro, nas imediações do Campo Grande, onde constam, abaixo em uma placa, os nomes dos comandantes das quatro expedições militares, e claramente dedicado ao processo de heroicização da atuação dos militares na Guerra de Canudos, o mausoléu do Campo Santo, concebido sob uma outra concepção e contexto, teve a intenção de fazer memória a todos os mortos, “sem distinção alguma”. É possível verificar esse intento nas palavras do secretário do Comitê, o jornalista Léllis Piedade, que segundo o Jornal de Notícias (BA), teria se referido ao monumento como “no campo da morte, o abraço de todos os irmãos que caíram nos campos de Canudos” e nas páginas dos jornais da época, como o Diário do Maranhão de 15 de março de 1900, que noticia o levantamento do monumento, como sendo dedicado “à memória das vítimas da guerra civil de Canudos, sem distinção de partido”.
Simbolizava assim, parte da mea-culpa de setores da elite baiana; um reconhecimento do erro cometido contra a população de Canudos, do massacre e da degola praticada pelo Exército ao fim da guerra, já constante em outros documentos textuais como o Manifesto dos Estudantes da Faculdade de Direito da Bahia (03 de novembro de 1897), o Libello Republicano de Cézar Zama e o livro Descripção de uma viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades (ambos publicados em 1899). Era um pedido recôndito e discreto de perdão então erigido em pedra e cal; em forma de monumento...
Marcos Roberto Brito dos Santos é historiador, doutor em História pela UFBA.
FONTES HISTÓRICAS UTILIZADAS:
- PIEDADE, Lélis; OLAVO, Antonio (org.). Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia (1897-1901). Salvador: Portfolium, 2002.
- Petição para aquisição do Terreno no Quadro 06, datado de 31 de agosto de 1899. ASCMB Coleção Petições ao Cemitério do Campo Santo - (1890 a 1899).
- Termo de Perpetuidade assinado pelo Dr. Lélis Piedade, Secretário do Comitê Patriótico. ASCMB nº 48; Livro 7º de Escrituras do Campo Santo; Fls. 226v, 227, 227v.
- Livro de Registros de Mausoléus do Cemitério do Campo Santo - (ASCMB nº 1724; Fls. 178).
- “Monumento”. Diário do Maranhão, nº 7962, 15 de março de 1900.
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