Livro "Do Joanes ao Jacuípe, uma história de muitas querelas, tensões e disputas locais" - Lanç. 4/5
Existem, fundamentalmente, duas maneiras de orientar os estudos da memória ancestral de um lugar geográfico em seu campo histórico: descrevendo-o e interpretando-o. Todas as situações estão interligadas através dos fatos históricos e se enquadram em uma estrutura ampla, que cabe ao historiador explicar para que o leitor possa entender.
A publicação do livro Do Joanes ao Jacuípe, uma história de muitas querelas, tensões e disputas locais tem como objetivo trazer à luz a relevância histórica do município de Camaçari, que está inserido no contexto da colonização do Brasil desde o século XVI, naquela altura integrado ao sistema de defesa da Cidade do Salvador, onde envolvia a comunidade indígena do Aldeamento Espírito Santo que, muitas vezes, se tornou quartel-general de resistência da capitania da Baía de Todos-os-Santos frente às diversas tentativas de invasão da colônia do Brasil.
O cerne desse estudo, além das querelas e tensões locais, orbita em torno de uma emblemática discussão relacionada ao marco de fundação do município de Camaçari, que conserva em Vila de Abrantes uma igreja que possui 462 anos, tendo, oficialmente, o município apenas 262 anos. Ora, tendo como marco fundante o momento em que o Aldeamento do Espírito Santo, 200 anos após sua fundação, se tornou Vila da Nova Abrantes do Espírito Santo. Camaçari completa, no dia 29 de maio de 2021, 463 anos de fundação distinto dos 263 anos comemorados a título de elevação do antigo aldeamento ao status de vila. Esse fato é apenas um entre tantos convites para um novo olhar, e muita quebra de paradigmas fustigados por essa obra.
A história social, considerando as relações de poder, são as bases desse trabalho. Essa foi, estrategicamente, dividida em quatro partes. Na primeira o foco recai nas relações políticas entre o poder local e o poder metropolitano sediado em Lisboa, capital do reino de Portugal, utilizando como ponto de partida para passear pela história de Camaçari e dos municípios de Salvador, Simões Filho, Lauro de Freitas, Dias D’ Ávila e Mata de São João, através de uma querela entre o capitão João Francisco da Costa, membro de uma importante família portuguesa, e o padre José Pereira Pinto em torno da construção de uma ponte sobre o Rio Joanes. Essa controvérsia conduzirá o leitor a compreender a gênese do sistema de pedágio e travessia do Rio Joanes. Nesse contexto foi possível discutir a formação de quilombos na região e ainda fazer uma surpreendente discussão etimológica dos nomes indígenas de grande parte dos acidentes geográficos e de algumas localidades situadas na região.
A segunda parte se ocupa da reconstituição da sociedade local da Vila da Nova Abrantes do Espírito Santo. Dentro desse contexto, o autor buscou desvelar os mecanismos utilizados por determinados grupos sociais para a conquista, controle e manutenção do poder local, que era representado pela Câmara de Vereadores e pelos arrendatários de terras na Vila de Abrantes, mostrando como se deu as tentativas e manobras para o espólio das terras dos índios da vila.
A terceira parte trata dos desdobramentos do legado patrimonial deixado pelo capitão João Francisco da Costa, culminando na acusação por parte dos familiares de seu sobrinho, Luís da Costa Guimarães, de ele ter sido assassinado por seu compadre, Antônio Esteves dos Santos, em razão dos bens que havia recebido por herança de seu tio, João Francisco da Costa, que foi um dos maiores latifundiários da região, pois suas terras tinham início em Santo Antônio do Rio das Pedras, hoje bairro de Valéria na Cidade do Salvador, e se estendia até o Engenho Água Comprida na freguesia de São Miguel de Cotegipe (hoje Simões Filho), onde era proprietário de três engenhos de cana-de-açúcar, pois suas propriedades continuavam até a Feira de Capuame, hoje município de Dias D’Avila.
Ainda neste capítulo o autor examina o processo de implementação da lei de terras, que buscava legitimar a posse de terras no Brasil observando seu resultado prático na Vila de Abrantes. Mesmo não sendo tema específico deste trabalho, o autor destaca a importância da “Estrada Real das Boiadas”, que passa por grande parte da região, estrada esta que foi usada como peça fundamental na “Guerra de Independência do Brasil na Bahia”. O autor sustenta que essa seja, dentre outras, uma das principais razões que justificaria a inserção de Camaçari e Dias D’Ávila no circuito da passagem do fogo simbólico nas comemorações do 2 de Julho. O autor nos alerta que o primeiro reconhecimento dos feitos históricos e heroicos do município data da década de 1930.
A quarta e última parte do livro se atém à trajetória de algumas famílias residentes em Camaçari desde o século XVIII. Entre as diversas famílias, o autor destaca Pereira das Chagas, Souza Campos, Carrilho, Silva Paranhos, Montenegro, Coelho Guimarães, além de outras que se entrecruzam inclusive com descendentes dos índios do primitivo aldeamento e que não se reconhecem como descendentes dos povos originários devido ao apagamento de suas memorias ancestrais. Ousando-me refletir para além do horizonte na linha do tempo em relação à contemporaneidade, estabeleço uma conexão cósmica de pensamento com o menestrel baiano, Caetano Emanuel Viana Telles Veloso, para encerrar esse prólogo, citando parte de uma das suas composições musicais: Um índio.
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio...”
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