Artigo "Perseguição ao Povo Pataxó", por Cyro de Mattos
O povo Pataxó Hã-Hã-Hã da Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu na Bahia não tem uma história diferente de outras populações indígenas que viviam intactas com a natureza antes de Cabral desembarcar aqui. Registra a memória desse grupo indígena marcas desfavoráveis de uma incrível resistência e trajetória heroica com a quase extinção ante a permanência de atos ilegais, violência, corrupção, usurpação das tradições milenares, promovido tudo isso pelo colono, no passado, e no presente pelo poder econômico vinculado à “grilagem”.
Nunca é demais lembrar que dos seis a nove milhões de nativos encontrados por Pedro Álvares Cabral, quando este oficialmente descobriu o Brasil em 1500, a população indígena hoje atinge em torno de cento e vinte mil sobreviventes. No caso do povo Pataxó Hã-Hã-Hã da Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu, a terra, assistência médica e boa alimentação constituem os principais direitos e necessidades para que este grupo indígena não chegue à extinção, da mesma maneira como vem ocorrendo em geral com outras populações indígenas do território brasileiro.
A Reserva Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu foi criada pela lei n° 1916, de 9 de agosto de 1926, tendo o governo do Estado da Bahia autorizado através deste diploma legal a reservar 50 léguas quadradas de terras, em florestas gerais e acatingadas, destinadas à conservação das essências florestaes naturaes e gozo dos índios. A ocupação imemorial da referida área, prévia a qualquer testemunho conhecido, pelo povo Pataxó Hã-Hã-Hã é notória, sendo que as primeiras indicações da presença dos indígenas vêm do início do século XVII.
Criada legalmente a Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu, ao povo Pataxó Hã-Hã-Hã-Hã juntam-se outros indígenas, que, constantemente, eram banidos de seus territórios por fazendeiros e colonos. Indígenas do povo Tupiniquim, que viviam no litoral de Ilhéus, os grupo Sapuiá, , Baenã, Gueren, Mongoió e Camacã, do sul e sudoeste baiano, aí se refugiam em busca de abrigo. E desta convivência vão ser considerados Pataxó Hã-Hã-Hã todos os indígenas que nasceram no território étnico da Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu.
Os argumentos dos fazendeiros, levantando dúvidas quanto à autenticidade do grupo indígena da Reserva Caramuru-Catariba-Paraguaçu, são inconsistentes porque se fundamentam em critérios biológicos e culturais falsos. A propósito, a Lei n° 6001, o Estatuto do Indígena, no artigo 3*, preceitua que índio ou silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana, que se identifica como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distingue da sociedade nacional. E não é preciso ser etnólogo para saber que a identidade étnica de um grupo indígena é exclusivamente função de autoidentificação e da identificação feita pela sociedade envolvente. No entanto é sabido que setores dessa sociedade podem, por interesses, em determinadas circunstâncias, negar essa identidade aos grupos indígenas e criar mecanismos de discriminação racial e falsos conceitos.
A Reserva Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu é constituída de terras férteis que são destinadas à criação de gado e, em algumas faixas, à lavoura de cacau. Estendendo-se do Rio Colônia, ao norte, até o Rio Pardo, ao sul, abrange parte dos municípios de Pau Brasil, Itaju do Colônia e Camacã, numa área em que confrontam as zonas de cacau e de pecuária, sendo esta com núcleo regional no vizinho município de Itapetinga. Com base em documentos e poucos testemunhos naturais, a região era recoberta de densa mata úmida de transição, não demorando muito para que sua fertilidade atraísse a cobiça de fazendeiros arrendatários, que ali começam a se fixar desde 1936, forçando dessa maneira a realização de um acordo entre o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e o governo do Estado da Bahia. Tal acordo registra em 1937 a área original de 50 léguas quadradas para os 36.000 hectares atuais.
Vítimas de perseguições constantes, que culminavam em assassinatos, usurpações de seu território, agressões violentas aos valores e costumes em seu sistema de vida, o povo Pataxó Hã-Hã-Hã da Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu foi colocado numa área de terra improdutiva, no município de Camamu. Trezentas famílias deste grupo indígena tiveram condições de reivindicarem a retomada de tudo o que lhes houvera sido tomado, a partir do começo dos anos 80, depois de abandonadas pela FUNAI no novo “habitat”.
De volta ao território tradicional e de direito, depois de décadas de perseguições, o povo Pataxó vivencia ainda hoje o problema da posse de suas terras, através da qual a privacidade cultural e a autonomia alimentar podem ser alcançadas, em virtude de ser possível a continuidade das tradições milenares, dos valores e costumes, bem como o cultivo de lavouras temporárias e criação de animais a serem usados como subsistência. De uma maneira geral pode afirmar-se que a evolução do problema da posse de terras dos indígenas vem dos idos do Brasil colonial, quando a busca pela propriedade de sesmarias e latifúndios teve começo e foi se propagando ao curso dos anos. O historiador Silva Campos, em sua Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus assinala que, em 1651, expedição de Francisco Rocha dá combate aos pataxós às margens do Rio Gongogi, um afluente do Rio de Contas; e em 1700 estes silvícolas atacam Poxim e Olivença, respectivamente nos municípios de Canavieiras e Ilhéus. Nas primeiras tentativas de abertura da estrada entre Minas Gerais e o Sul da Bahia, no período compreendido entre 1810 e 1812, os indígenas da região Colônia e Pardo resistem e são combatidos.
Paralelamente aos problemas com a posse de terras, os Pataxós têm sido vitimados ainda por uma série de fatores, que vão desde os frequentes conflitos com fazendeiros até a propagação de doenças oriundas da civilização branca. Parte dos indígenas não dispõe de resistência imunológica para doenças corriqueiras entre pessoas da comunidade branca; em tais circunstâncias, passam a ser vítimas fáceis de afecções que, em situações normais, não inspirariam maiores cuidados.
Terra, assistência médica e boa alimentação são os principais direitos e necessidades do Povo Pataxó da Reserva Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu como de uma maneira geral de todos esses grupos nativos, primeiros habitantes do País que, juntamente com outros grupos étnicos, tiveram um desempenho destacado na consecução de fatos históricos e na construção da fisionomia cultural do Brasil.
No mês de abril, em que o dia 19 é o escolhido como data-homenagem aos primeiros habitantes do Brasil, o presente maior que poderia ser dado à comunidade Pataxó seria a garantia de que esses direitos lhes fossem definitivamente assegurados. Só assim sua sobrevivência e seu futuro deixariam de ter perspectivas nada favoráveis. Isso acontecendo, como nesta direção determina a Constituição Federal, no Capitulo VIII, do Titulo VIII, da Ordem Social, e a Lei n° 6001, o Estatuto do Índio, o Dia do Índio não seria comemorado de maneira simbólica através das escolas primárias, na região sul e extremo sul da Bahia. Não seria como em muitos casos dessa celebração um momento exótico e de diversão, fazendo com que cada criança se fantasie de indígena e não conheça a dura realidade em que vive este grupo indígena correndo risco de extinção.
Com a voz do povo Pataxó Hã-Hã-Hã da Reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu tendo realmente ressonância, não se faria necessário repetir o depoimento de Samado Santos, um dos integrantes deste grupo indígena, quando perante a V Assembleia Nacional Indigenista Missionário, em Itaici, no mês de junho de 1983, disse em certo trecho do seu clamor:
(...) “Durante todo esse tempo, nós conviveu lá, nós nunca afastemo. Eu, por exemplo, nunca me afastei. Desde 1947 eu venho sofrendo. Agora, hoje, minha vida desamparada, roça tomada, tudo tomado, e eu vivo desamparado desse jeito... Agora nós quer ser apoiado porque nós não pode ficar no mundo avoando demais, porque se tivesse asa pra voar nós cansava, porque voava e não podia voltar”.
Cyro de Mattos é escritor e associado do IGHB

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