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Memória e Sociedade

Há livros que jamais serão esquecidos, tal a contribuição fundamental para o campo das ideias do povo brasileiro. Um deles praticamente me seduz. Trata-se de um trabalho sério e criativo de Ecléa Bosi, publicado em São Paulo, sob a direção de Alfredo Bosi. Quem não é do “ramo”, talvez desconheça o prestígio de que desfruta essa brilhante professora emérita e titular do departamento de Psicologia Social da USP e do trabalho no Instituto de Psicologia da USP. Graduou-se em 1966 na mesma universidade, fez mestrado em 1970 e doutorado (1977), em Psicologia Social.


O prefácio da obra traz a assinatura de João Alexandre Barbosa e versa sobre as contradições da sociedade brasileira, na sociedade de classes, que anula a mulher, a criança e o idoso, por quem caem todas as mazelas e injustiças sociais. “É mais do que sabido que a mulher, a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos em outras classes sociais”. É mais do que conhecido que a classe social é a posição ocupada pelo sujeito nas relações de trabalho. Como a obra data de 1979, muita coisa já se modificou, para melhor, é claro. Este é estudo, inclusive, produzido como tese de livre docência de Ecléa Bosi, na USP.


A preocupação central do trabalho diz respeito às memórias dos velhos. Para obter os dados necessários à sua elaboração, a autora entrevistou pessoas da mesma idade, superior a 70 anos, inseridas no espaço de suas vidas - a cidade de São Paulo. O objetivo era recuperar o momento registrado pelos que prestaram depoimentos, sem se apurar a veracidade dos acontecimentos recordados por um ou por outro. Disso resultou algo surpreendente - a construção de uma amizade e confiança com os recordadores, resultado de amadurecimento de quem deseja entender a própria história de vida do outro. Quem realiza uma pesquisa nos moldes dessa feita por Ecléa compromete-se inteiramente com o sujeito da pesquisa. Envolve-se com ele e o acompanha pari e passu, ficando magnetizado diante de um novo tema.


Infelizmente, tem caído de prestígio, em nosso meio, o costume de contar histórias. Para Ecléa, talvez tenha desaparecido o costume de trocar experiências. Sobre a arte de narrar, existem dois tipos de narrador: o que vem de fora e narra suas viagens; e o que permaneceu em sua terra, junto aos conterrâneos, cujo passado o habita. A arte da narração não está contida nos livros, seu veio épico é oral.


Com o passar dos anos, a narração exemplar foi substituída pela informação de imprensa, que é leve e medida pelo bom senso do leitor. A arte da narrativa morre quando morre a retenção da lembrança. Também perdeu-se a faculdade de escutar e, em nossos dias, com o uso e abuso dos aparelhos celulares, as pessoas se comportam como “autistas”.


Ao longo do seu texto, Ecléa Boisi escutou muitas lembranças de pessoas idosas, embora inteiramente lúcidas e capazes de recordar o passado, com bastante nitidez. Além de “Memória e Sociedade”, escreveu: “Cultura de Massa e Cultura Popular - leitura de operárias”, “Simone Weil - a condição operária e outros estudos sobre a opressão e Velhos Amigos”.


São ricos e muito curiosos os testemunhos dos que prestaram depoimentos. Muito difícil selecioná-los, mas me arrisco a recordar ode D. Brites: “Nasci na Rua Maria Antônia, 51, dia 20 de setembro de 1903. Sou paulista, paulistana dos campos de Piratininga, e sou garibaldina; dia 20 de setembro é o dia em que Garibaldi unificou a Itália e os bondes de São Paulo se embandeiram todos. Eu dizia para minhas irmãs menores que era para festejar meu aniversário. Sei que nasci num domingo de sol muito bonito. Meu irmão Mário tinha doze anos. Preciosa dez anos, o Caetano nove anos, Vivina seis anos e o Francisco quatro..”...”Nossa mãe tinha outros admiradores, entre eles um fazendeiro em que minha avó fazia muito gosto. Um dia, ela estava na janela e quando esse fazendeiro desceu a rua, ela entrou. Minha avó deu um tapa no ombro dela e perguntou “Está esperando um doutor”? Mamãe contava sempre isso rindo. Casaram-se em Itapira e foram morar em Ribeirão Preto, onde nasceram meus irmãos mais velhos. Em 1903 vieram para São Paulo porque papai não queria botar filho em colégio interno”.


“Não era uso naquele tempo uma senhora sair sozinha de casa, tinha que levar uma criança. Então, quando tia Brites ia visitar um amigo eu era a escolhida, às vezes.Tenho impressão de que ela andava muito a pé porque morava no Largo do Arouche e ia até o Largo da Misericórdia almoçar com esse amigo”.


Conectada com os assuntos que relata, D. Brittes segue:”Quando atravessávamos o Viaduto do Chá eu tinha um medo louco. O chão tinha umas frinchas largas e pelas frinchas via, lá em baixo, uma água barrenta, chácaras e plantações . Esse era um viaduto frágil, de ferro, construído pelo Nothmann.


Sem hesitação, o relato prossegue claro e transparente da cabeça privilegiada daquela dama.

“Meus avós eram republicanos e abolicionistas. Meu avô era do grupo de Benjamim Constant, em que assinaram um pacto de sangue para defender a República. Indo ao Museu da República você vê numa vitrina o livro de atas do Clube Tiradentes a que pertencia meu avô e que foi fundado para propaganda republicana”.

Quantas informações, quantas minudências estavam alojadas na cabeça privilegiada daquela senhora!

“Quando Prestes foi preso em 37, não se sabiam notícias pelos jornais; as notícias corriam de boca em boca, só se sabiam muito depois. Daí o valor de Sobral Pinto que assumiu a defesa de Prestes, se instituiu advogado dele e ia visitá-lo na prisão. Prestes ficou dez anos na prisão. Ele passou dez anos completamente segregado. A mãe dele saiu daqui com a filha mais moça, a Lígia, e correu o mundo inteiro pedindo pelo filho. E foi morrer no México. O presidente do México se ofereceu como fiador para Prestes sair daqui e ver a mãe que estava à morte. Ele, presidente, afiançou que traria Prestes para prisão. E o Getúlio não consentiu. Foi um período bárbaro, só teve semelhança com este em que vemos o governo negar cidadania para as crianças dos exilados”.


Bem, é tempo de concluir, desejei lembrar uma leitura agradável que sempre quis comentar.



Fonte: Tribuna da Bahia

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